Análise a ser expandida e aprofundada, por Frederico Bussinger

Grande espaço do noticiário do último 16/DEZ foi dedicado à visita do Presidente Bolsonaro ao Ceagesp na véspera. Na agenda oficial a reinauguração da tradicional torre do relógio; tombada, e agora reformada.

Mas a grande novidade do evento ficou por conta da notícia de que o processo de privatização da empresa, “qualificada” pelo Programa de Parcerias de Investimentos – PPI e incluída no Programa Nacional de Desestatização – PND, há pouco mais de um ano (Decreto n° 10.045/19), está interrompido.

A transferência está cancelada”. “Enquanto eu for presidente da República essa é a casa de vocês”; disse o Presidente em seu discurso para uma massa de permissionários, comerciantes e trabalhadores daquela central de abastecimento. Essa visão e posicionamento foram ratificados e defendidos por ninguém menos que o (privatizante) Ministro Guedes, três dias depois: “Bolsonaro está certo em ser contra privatização da Ceagesp no momento”.

Esclareça-se que sobre o mesmo objeto há 2 processos em curso. Em princípio independentes, mas muitas vezes confundidos entre si; a saber: i) a desestatização/privatização da empresa (Ceagesp), e ii) a transferência da central de abastecimento (Entreposto Terminal São Paulo – ETSP) para “algum sítio” no entorno do Rodoanel.

Prosseguindo, o Presidente explicitou as razões do seu posicionamento. O motivo dessa guinada no processo: “queriam privatizar para o amiguinho se dar bem”; “… os defensores da privatização do terreno são ratos”; “estamos desratizando o Brasil”; declarações majoritariamente entendidas pelos articulistas como estocadas ao governador Dória. Assim; depois do imbróglio das vacinas, em curso, e da polêmica em torno da 2ª travessia seca Santos-Guarujá (ponte X túnel), para ficar nos casos mais recentes, um novo tema entra para o rol do contencioso Governo Federal X Governo do Estado de São Paulo (ou vice-versa).

Nesses episódios, uma má e uma boa notícia:

A má é que esse clima de Fla X Flu, polarizado, e com indícios de contaminação eleitoral, estreita o espaço, dificulta reflexões mais consistentes e coloca as questões estratégicas para o funcionamento da metrópole, como abastecimento, mobilidade e logística em segundo plano.

A boa notícia é a oportunidade (mais uma!) de se alargar o escopo analítico desse complexo e multifacetado tema; até agora limitado pelas estreitas balizas estabelecidas por governantes para a elaboração e discussão do “Projeto de Intervenção Urbana para o Território do Arco Pinheiros”. Aliás, essa oportunidade já existia desde 22/JUN passado, por decisão da 6ª Câmara de Direito Público do TJSP, acolhendo Agravo de Instrumento nº 2272071-21.2019.8.26.0000 do MPSP. Esta determinou estudos complementares e, para tanto, a interrupção da tramitação do projeto de lei autorizativo (PL nº 427/19): segundo vereadores envolvidos com sua tramitação, de tão abrangentes os estudos, é como “recomeçar do zero”.

Questões em aberto:

Um exemplo desse reducionismo analítico é que mais de quatro anos depois, a pergunta-título e as dúvidas expostas no artigo “Por que transferir o CEAGESP dali?” seguem sem respostas! Da mesma forma que continuam sendo desconsiderados, nessas análises, aspectos relacionados a abastecimento e logística. Uma curiosidade: esses verbetes sequer aparecem no PPT usado para apresentar o projeto. Ou, mesmo, nem constam do texto do PL!

E mais; eles vêm sendo também desconsiderados ao longo de todo o processo e das decisões. Vale relembrar: i) não foram base para elaboração e discussão do projeto (que prioriza o imobiliário; variável também focada pelo Ministro Guedes: “a Ceagesp … está localizada na área mais nobre para expansão imobiliária em São Paulo, e pode valer R$ 40 bilhões, mais que a Eletrobras”; ii) não foram razões centrais para inclusão da empresa no PPI e PND (focado em ativos; na privatização) e, agora, tampouco foram motivos invocados para a recente interrupção do processo: tudo se passa como se abastecimento fosse um problema menor ou, até, um não-problema na/para a megametrópole!

Mobilidade, por seu turno, aparece 5 vezes no PPT e 12 ao longo das 43 páginas do PL (outro tanto de anexos). Sempre i) relacionado à mobilidade do entorno do empreendimento que se cogita venha a ocupar a área do CEAGESP (“distrito de inovação”); e ii) focado no “transporte coletivo e não motorizado” (art. 3º-VI; 4º-VII; 6º-V, IX, X; Quadro-2A). Nada relacionado a carga ou abastecimento; nada referente à mobilidade da cidade ou, mais amplamente, da metrópole ou da macrometrópole.

Por outro lado, a FAPESP (entidade focada no fomento à inovação mas, nesse caso, também parte interessada no desenlace desses processos), contratou à FIPE (imagina-se por orientação do governo estadual) o “Implantação de Ambientes de Inovação e Criatividade:Estudos técnicos para a viabilização dos distritos de inovação na gleba Ceagesp, em São Paulo, e no HIDS-Fazenda Argentina, em Campinas”; cujo sumário executivo (36 pgs) foi divulgado em JUN/2020.

Chama atenção na sua caracterização a expressão “viabilização”. Isso indica que a decisão de transferência da central de abastecimento “para outro local” e a implantação do “distrito de inovação”, ali, era premissa do estudo e definição constante do seu Termo de Referência. Tal encaminhamento confronta o Inciso-I, do art. 5º, da Resolução Conama nº 1/96 (incidentalmente também mencionado pela relatora do TJSP; Des. Silvia Meireles): este requer a necessidade de que as análises contemplem “todas as alternativas tecnológicas e de localização de projeto, confrontando-as com a hipótese de não execução do projeto”. No caso, a hipótese de não transferência do Ceagesp; avaliação essencial, mas que, ao menos publicamente, dela não se tem conhecimento.

Por conseguinte, os respeitáveis arquitetos, economistas, ambientalistas e juristas que integraram a equipe técnica do estudo (pg. 36), não tiveram como ou porque se debruçar sobre a “viabilidade”, pertinência, oportunidade, ou conveniência da manutenção do Ceagesp onde ele hoje se encontra: tiveram que se ater à ”viabilização” do que as autoridades adrede definiram e estabeleceram para o estudo!

Chama atenção, também, o destaque dado à localização da “gleba do Ceagesp”. Dentre outros, diz o texto (pg. 9): “está na confluência das marginais dos rios Pinheiros e Tietê, vias de grande circulação e que dão acesso a importantes eixos de ligação com outras metrópoles do Estado: as rodovias Anhanguera, Bandeirantes e Castello Branco, além da Dutra, no eixo do Vale do Paraíba”. E, não menos curiosa, a própria caracterização do PIU-ACP na lei: “Setor Orla Ferroviária e Fluvial da Macroárea de Estruturação Metropolitana…” (caput do art. 4º do PL).

A curiosidade tem pelo menos dois motivos: i) Tais “virtudes” certamente são mais relevantes para uma central de abastecimento que para um “distrito de inovação”; certo? ii) Não parece contraditório, simultaneamente louvar-se tais “virtudes” e apresentar o projeto/empreendimento como instrumento para desenvolver “novas centralidades” (art. 6º-VII e IX do PL) e “transporte não motorizado”? Se esse é o objetivo, que relevância tem tais estradas, a ferrovia e o rio/hidrovia?

Uma pauta; múltiplas variáveis:

Não está em questão a necessidade de diligente combate à eventual corrupção. Nem de continuada modernização de gestão, da empresa e da central de abastecimento. Nem mesmo se questiona a desestatização da empresa Ceagesp.

Também não está em questão a necessidade de uma nova central de abastecimento para a macrometrópole paulista, na linha do que há em algumas outras metrópoles mundiais (divisão funcional e/ou regionalização): afinal, quando a central de abastecimento (60% dos hoti-fruti-granjeiros e pescados consumidos na grande São Paulo) foi ali implantada, o município de São Paulo tinha entre 1/3 e metade da atual população.

Além disso, ele“ abastece cerca de 30% de tudo que é comercializado nas centrais de abastecimento do Brasil, desde a região amazônica até a ponta do Rio Grande do Sul” (1.500 municípios, 22 estados  e 19 países): de fato, não há mesmo porque essa carga adentrar à cidade! Aliás, da mesma forma que não há porquê 5 a 6 Mt/ano de madeira (movimentação mais que 50% superior à do Ceagesp – 3,4 Mt/ano), originária do Vale do Ribeira e destinada ao Vale do Paraíba, transitarem pela Marginal Tietê: disso pouco se fala!

Também não está em questão a estratégia de “criação de novas centralidades” visando à redução de indicadores de viagens e/ou de pax-km; tendência, aliás, anabolizada pela pandemia.

Não está em questão, tampouco, a importância da inovação, da chamada “economia criativa”, e de infraestruturas destinadas a incentivá-las… mormente em uma metrópole mundial que vê algumas de suas empresas se deslocarem para o interior e, mais recentemente, também segmentos de sua população em função da pandemia.

O que é difícil de se entender é que o abastecimento de 12 milhões de paulistanos, ou 21 milhões de habitantes da RMSP, responsáveis por mais da metade do PIB paulista, seja simplesmente desconsiderado nessa discussão: incompreensível!

Difícil de se entender também o porquê: i) cogita-se desprezar a possibilidade de aumentar a participação ferroviária na matriz de transportes paulista (como sempre anunciado!), dado que há ferrovia contígua ao Ceagesp e, mesmo, trilhos ociosos mas que ainda adentram à central de abastecimento; ii) também a possibilidade dos horti-fruti-grangeiros, do Alto Tietê (Mogi das Cruzes e vizinhos), ou da Zona Zul (Parelheiros e região) virem navegando pelos Rios Tietê e Pinheiros, também vizinhos; c) se queira fazer com que cerca de 50 mil pessoas por dia tenham que viajar mais 10, 20 ou 30 km a cada compra (com todas as implicações de tempo despendido, consumo de combustível e emissões; tanto de gás efeito estufa – GEE como de particulados); e d) que a “last mile” (questão logística chave!) do abastecimento paulistano, ironicamente, passe a ter 5, 10 ou 20 milhas!

São essas questões irrelevantes? Não merecem ser analisadas?

E nem se invoque exemplos estrangeiros. P.ex; Hunts Point, a principal central de abastecimento de Nova Iorque, dista do Central Park praticamente o mesmo que nosso Ceagesp da Praça da Sé. Também o Mercabarna, de Barcelona; Xinfadi, de Beijing; e Mercamadrid, de Madri. Rungis, de Paris, dista da Torre Eifel um pouco mais. Toyosu, de Toquio, bem menos do Palácio Imperial.

Ou seja, pelos benchmarkings internacionais, centrais de abastecimento não são vistos como estorvos urbanos. Ao contrário, como equipamentos nevrálgicos para o funcionamento das cidades ou metrópoles. Alias, no caso do de Nova Iorque, ante dificuldades de acessos (o que não é o caso do Ceagesp, cujo trânsito pesado é majoritariamente noturno!), ao invés de cogitar transferi-lo do sítio atual, os governos americanos (federal, estadual e municipal) vêm empreendendo “Programa de Mitigação de Congestionamento e Melhoria da Qualidade do Ar”; incluindo construção de vias expressas e modernização e ampliação ferroviária.

Tem-se em conta que há diversos comerciantes, particularmente do próprio Ceagesp, que, ante os anúncios governamentais no passado recente acabaram por adquirir propriedades na região cogitada para a transferência; variável que também deve ser considerada.

O que é difícil de ser entendido, em termos de boas práticas de definição e implementação de políticas públicas, de gestão/governança, e de processo decisório governamental, é que uma definição tão estratégica para a Macrometrópole paulista, como essa, seja tomada apenas com base em algumas variáveis seletivamente arroladas… por mais nobres que sejam.

Como incidentalmente, por motivação federal e municipal, o processo deve seguir paralisado, que tais análises sejam expandidas e aprofundadas: com novos e mais abrangentes dados, com discussões e com transparência.

Frederico Bussinger é consultor, engenheiro e economista. Pós-graduado em engenharia, administração de empresas, direito da concorrência, e mediação e arbitragem. Foi diretor do Metrô/SP, Departamento Hidroviário (SP) e Codesp. Presidente da SPTrans, CPTM, Docas de São Sebastião e Confea. Coordenador do GT de Transportes da Política Estadual de Mudanças Climáticas. Presidente do Consad da CET/SP, SPTrans, RFFSA; da CNTU e Comitê de Estadualizações da CBTU. Secretário Municipal de Transportes (SP) e Secretário Executivo do Ministério dos Transportes. Consultor da ANTP. Membro do Consad/Emplasa e da Comissão Diretora do Programa Nacional de Desestatização.

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