O que diz o Escola sem Partido?
O projeto de lei Escola Sem Partido (ESP) busca tratar da liberdade de crença, de aprendizagem e do pluralismo de ideias no ambiente acadêmico. Prevê a proibição do que chama de “prática de doutrinação política e ideológica” pelos professores, além de vetar atividades e a veiculação de conteúdos que não estejam de acordo com as convicções morais e religiosas dos pais do estudante. Define, ainda, os deveres dos professores, que devem ser exibidos em cartazes afixados nas salas de aula.

O próprio site oficial do Escola Sem Partido, movimento que originou o programa, reconhece que os objetivos colocados pelo projeto já estão presentes na Constituição Federal.

A Carta Magna de 1988 prevê os princípios da neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado, pluralismo de ideias, liberdade de consciência, ensino e aprendizagem. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ratificada pelo governo desde 1992, assegura o direito dos pais à educação religiosa e moral de acordo com as próprias convicções para seus filhos.

O projeto de lei federal 867/2015, de autoria do deputado Izalci Lucas (PSDB-DF), transforma as diretrizes criadas pelo Escola Sem Partido em anexo do projeto de lei 7180/2014, que teve mais uma votação adiada nesta quarta-feira, 7, numa comissão especial (veja abaixo). Essa proposta adapta o código brasileiro à Convenção Americana e é de autoria do deputado Erivelton Santana (Patriota-BA), membro da bancada evangélica.

O PL propõe alterar o artigo 3º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Isso quer dizer que as mudanças valeriam para todas as salas de aula, do Ensino Básico às universidades.

Anexos posteriores tratando especificamente do combate ao que chamam de “ideologia de gênero” no ensino também foram adicionados, por diferentes deputados.

Como surgiu a ideia?
O Escola Sem Partido foi criado como movimento político, em 2004, pelo advogado Miguel Nagib. No site da iniciativa, o procurador do Estado de São Paulo afirma que a atuação do grupo se dá em duas frentes: pelo Programa Escola Sem Partido, um anteprojeto de lei, e por meio de uma associação informal de pais, alunos e conselheiros preocupados com o “grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras”. O advogado se refere aos educadores como “exército de militantes travestidos de professores.”

Nagib iniciou o movimento por conta de ensinamentos passados por um educador da escola particular de sua filha, então com 15 anos. Segundo ele, em entrevista à revista ‘Veja’ em 2008, esse professor de História gostava de comparar o guerrilheiro Che Guevara com São Francisco de Assis, frade italiano canonizado.

Quem defende o projeto?
O Movimento Brasil Livre (MBL), o vereador paulista Fernando Holiday, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) já demonstraram apoio à iniciativa. Holiday chegou a promover visitas surpresas a escolas paulistas para verificar “doutrinação ideológica”. Parlamentares da bancada evangélica foram autores de alguns dos projetos de lei ligados ao Escola Sem Partido.

O governador eleito de São Paulo, João Doria (PSDB), também afirmou recentemente que o ESP será uma bandeira de seu mandato na educação. “Escola é lugar de aprender. Não é lugar de fazer política”, disse.

Em geral, a doutrinação da qual fala o programa é vista como ligada à esquerda política, tanto pelo seu criador como pelos simpatizantes. Assim, políticos de direita costumam se associar com a ação.

Sem nomear especificamente o Escola Sem Partido, o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) citou a forte “doutrinação” como “um dos maiores males atuais” da educação em seu plano de governo. Ele também escreveu que as escolas devem lecionar mais matemática, português e ciências e não o que considera uma sexualização precoce — tanto que, enquanto candidato, insistiu em atrelar ao adversário Fernando Haddad (PT) o inexistente “kit gay”, um dos boatos mais difundidos no período eleitoral.

A “ideologia de gênero”, outro termo pejorativo para se referir às discussões de gênero, é mais um ponto ligado ao programa apontado como um problema das escolas pelo capitão reformado.
O que diz quem se opõe ao projeto?

Os principais atores da oposição são universidades e entidades de professores e de alunos, que argumentam que o Escola Sem Partido configura censura contra os docentes e prejudica o acesso de estudantes à informação e à pluralidade de ideias. Na comissão especial que analisa a matéria na Câmara (veja a lista de membros), os deputados que tentam obstruir o projeto pertencem a partidos identificados com a esquerda, como PT, PDT e PSOL.

Entidades internacionais também se posicionaram de forma contrária ao ESP. A Organização das Nações Unidas (ONU) entende que o projeto viola compromissos do Brasil com a educação e a liberdade, segundo documento assinado pelos relatores para liberdade de Expressão (David Kaye), Educação (Boly Barry) e liberdade religiosa (Ahmed Shaheed).

Para a ONU, o projeto representa uma “restrição indevida ao direito de liberdade de expressão de alunos e professores no Brasil”. A organização alertou ainda para o risco de se impedir discussões sobre gênero e diversidade sexual, “fundamental para prevenir estereótipos de gênero e atitudes homofóbicas por estudantes”.

A falta de definição do que é “doutrinação ideológica” também é criticada, porque “virtualmente qualquer prática educacional de um professor pode ser condenada”. Isso acaba prejudicando “o desenvolvimento de um pensamento crítico entre estudantes e a habilidade de refletir, concordar ou discordar com o que é exposto em aulas”.
Qual a situação do projeto de lei na Câmara?

Atualmente, o PL 7180/2014 é analisado por uma comissão especial na Câmara, presidida pelo deputado Marcos Rogério (DEM-RO). Nesta terça-feira, 13, está prevista uma votação do substitutivo do relator da matéria, o deputado Flavinho (PSC-SP) — isto é, deve ser feita uma decisão sobre um texto que altera parcialmente a pauta original.

No novo parecer, Flavinho inclui um artigo que determina que o poder público não interfira no que considera um processo de amadurecimento sexual dos alunos nem permita “dogmatismo ou proselitismo na abordagem das questões de gênero”. O texto (veja o documento completo) mantém a proibição de que professores promovam “opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias”.

Outra proibição incluída no parecer é de políticas de ensino, currículo escolar e disciplinas obrigatórias ou complementares que “tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’”.

Na semana passada, a votação sobre o substitutivo foi adiada. Na ocasião, vários professores contrários ao projeto protestaram no plenário da comissão. Na sessão desta semana, ainda há a possibilidade de um pedido de vista postergar a análise do assunto mais uma vez.

E ainda há várias etapas a serem cumpridas para que o Escola Sem Partido vire lei. Para entrar em vigor, o PL deve passar ainda pelo plenário da Câmara e obter a maioria dos votos. Se aprovado, o projeto segue para o Senado e, depois, para sanção presidencial.

Já existe alguma aplicação da lei no Brasil?
Além da proposta de lei federal, há várias tentativas de implantar o programa ESP nas esferas estadual e municipal. O coletivo Professores Contra o Escola Sem Partido levantou parte dessas proposições neste mapa. Pelo menos cinco municípios aprovaram leis que impedem discussões ideológicas ou sobre gênero: Santos, Jundiaí, Pedreira, Ocauçu e Lorena, todas no Estado de São Paulo, segundo reportagem do site Gênero e Número.

Em Pedreira, no interior paulista, a lei que instaura o programa está em vigor há um ano — é a primeira a ser aprovada no País. No entanto, a legislação não tem efeito prático e não foi invocada em nenhum caso, como reportou o Estado. A medida vale para os 2,7 mil alunos do ensino fundamental, de 7 a 10 anos.

A Assembleia Legislativa do Alagoas também aprovou uma legislação chamada ‘Escola Livre’. No entanto, a lei é alvo de uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF).

Existem decisões judiciais contra o Escola Sem Partido?
Vários entendimentos jurídicos questionam a constitucionalidade de projetos do Escola Sem Partido. Em maio, a advogada-geral da União, Grace Mendonça, encaminhou uma manifestação ao STF contrária à legislação ‘Escola Livre’ aprovada no Alagoas. Para Mendonça, o tema é de competência da União, não dos Estados.

A lei alagoana é objeto de uma ação direta de constitucionalidade movida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE). O relator do processo, ministro Luís Roberto Barroso, decidiu em 2016 conceder uma liminar para suspender o programa ESP no Alagoas.

O mesmo processo motivou uma manifestação em 2016 do então procurador-geral da República, Rodrigo Janot. A PGR também considerou que a iniciativa é inconstitucional e despreza a capacidade reflexiva dos alunos. “Há equívocos conceituais graves, como o de considerar que o alunado seria composto de indivíduos prontos a absorver de forma total, passiva e acrítica quaisquer concepções ideológicas, religiosas, éticas”, afirmou Janot em seu parecer.

O projeto de lei federal também foi questionado pelo Ministério Público Federal. Em nota técnica de 2016, a procuradora da República dos Direitos do Cidadão Debora Duprat ressaltou que a Constituição prevê como objetivo da educação a formação das pessoas para a cidadania e para o trabalho, e também garante a pluralidade de ideias.

Em âmbito municipal, a lei do ESP de Jundiaí foi alvo de uma liminar do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). A decisão acatou um pedido do Sindicato dos Servidores Públicos da cidade, que argumentou que a legislação, ao vedar qualquer abordagem de temas ligados à sexualidade, pretende omitir a discussão de fundo, que se relaciona com os preconceitos sofridos pelas mulheres e a comunidade LGBT.

Existem projetos semelhantes em outros países?
O Escola Sem Partido é baseado num programa americano chamado No Indoctrination. que foi concebido como fórum online para receber denúncias anônimas sobre professores que supostamente estariam “doutrinando” politicamente os alunos.

Mais recentemente, um caso parecido tem repercutido na Alemanha, país onde a extrema-direita ganhou força nos últimos anos. O partido AfD (Alternativa para a Alemanha, em tradução livre) criou um site para receber esse tipo de denúncia. Além de soar controverso por partir logo de um partido político, o projeto recebeu inúmeras críticas de educadores, que o acusaram de censura.

Especialistas não veem nenhum caso em que projetos como esses tenham virado lei em algum lugar do mundo.

Existe “ideologia de gênero”? O que é?
A “ideologia de gênero” não existe como conceito científico. Trata-se de um termo pejorativo geralmente usado para se referir a debates sobre sexualidade e gênero.

O termo, sem definição específica, foi criado pela igreja católica, segundo estudo do pesquisador de educação e gênero Rogério Diniz Junqueira. Surgiu do Pontifício Conselho para a Família — um departamento da Cúria Romana — e de conferências episcopais, entre meados da década de 1990 e no início dos 2000. A ideia era que a Igreja, por meio de ações ligada a essa suposta ameaça, recuperasse espaço em sociedades secularizadas.

Foram testadas diversas denominações, para checar qual teria mais aderência, de acordo com Junqueira. Teoria do gender, ideologia da ausência de sexo, teoria do gênero radical, ideologia do lobby gay e ditadura do gender são alguns dos termos que aparecem em documentos da Santa Sé. Junqueira analisou esses escritos para chegar à origem da expressão.

A partir daí, o termo se descolou do ambiente da igreja e ganhou força em discussões políticas, principalmente entre círculos conservadores. Nesse espaço, foi criada a ideia de que a “ideologia” seria um ataque orquestrado de militantes de esquerda ao conceito da família tradicional. Mais de 50 países viram a ascensão desses grupos conservadores, contrários a discussões acerca de gênero.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here